Por suficiência material entendemos que todas as informações necessárias para se formular uma doutrina estão presentes nas Escrituras. Entretanto, pelo fato de o significado das Escrituras não ser totalmente claro, e algumas vezes as doutrinas se encontram mais implícitas que explícitas, outros "meios", além da Bíblia somente, foram- nos deixados pelos apóstolos: A Sagrada Tradição (que é a ferramenta que extrai as informações e as dispõe da forma correta) e o Magistério da Igreja. Juntas, estas três formas - a Sagrada Escritura, a Sagrada Tradição e o Magistério da Igreja - são formalmente suficientes para que se reconheça a verdade revelada por Deus.
Aqueles que defendem a suficiência formal das Escrituras advertem que reunir a Tradição ao contexto bíblico inevitavelmente tornará a última inferior à primeira. Temem, com isso, que meras tradições humanas subjulgue a palavra de Deus.
A Trindade pode ser provada pelas Escrituras, de fato (suficiência material), mas o uso somente das Escrituras não foi formalmente suficiente para evitar o aparecimento da heresia ariana. Em outras palavras, a decisão final da disputa ficou por conta da Sagrada Tradição, que demonstrou que a Igreja sempre foi trinitariana. Os arianos não podiam recorrer a nenhuma Tradição porque sua cristologia era uma inovação herética do século 4.
Os arianos, com isso, recorreram somente à Escritura. O princípio formal dos arianos era deficiente, por isso eles puderam recorrer à Bíblia e formular suas doutrinas (assim como vários grupos protestantes hoje em dia).
Os católicos alegam, então, que o conhecimento da Tradição apostólica é necessário juntamente ao conhecimento bíblico. Este é o princípio patrístico, e a forma como ele refuta os heréticos. Os argumentos bíblicos contribuíram com o centro de suas doutrinas, mas no fim deveriam consultar a Tradição do que "sempre foi aceito por todos e em todo lugar" (São Vicente de Lérins, Commonitorium).
Com certeza os Padres ensinaram que podiam provar suas conclusões a partir da Bíblia. Também ensinaram que a comunhão dos bispos sucessores dos apóstolos, reunidos em Concílio (com Roma tendo algum papel, o qual não pretendo abordar aqui), seriam os responsáveis pela correta interpretação da Bíblia. Todo este debate sobre a Sola Scriptura somente se tornou realidade quando um número considerável de cristãos começaram a afirmar que os bispos reunidos em Concílio haviam errado na interpretação bíblica durante vários séculos. Ambos os lados podem recorrer aos Pais, porque os Pais nunca ensinaram sobre a suficiência bíblica e a autoridade da Igreja/Tradição em discordância.
Concordo plenamente com o texto acima. Note que a última frase é importantíssima. Esta é a visão dos apóstolos, padres, do catolicismo, orientais e do anglicanismo histórico. Muitos protestantes, infelizmente, sentem não medem esforços - desnecessários - em separar estas duas autoridades. Livros inteiros já foram escritos sobre uma suposta defesa da Sola Scriptura pelos Pais da Igreja, quando na realidade estes defendem a suficiência material, a sua inspiração e suficiência em refutar os heréticos e falsas doutrinas em geral. É fácil pensar que os Pais foram defensores daSola Scriptura se seus ensinamentos sobre a Tradição Apostólica e a Autoridade da Igreja forem suprimidos ou ignorados pelos protestantes. Uma "meia-verdade" às vezes pode ser pior que uma mentira completa, pois quem a ensina deveria conhecer melhor do assunto, ou pelo menos conhece "metade" dele...
Podemos dizer que a Trindade não é uma doutrina clara nas Escrituras. A verdade é que esta doutrina foi o resultado de uma discussão de cerca de 400 anos. Tal fato não pode ser ignorado. Se a Trindade fosse demonstrada nas Escrituras com a claridade que os protestantes alegam que possui, tal doutrina, definida em Calcedônia, já deveria ser seguida e transmitida muito antes.
As Escrituras, isoladas, são suficientes para refutar o arianismo? Creio que sim. Apesar disso, creio que também seja verdade que alguém, em uma situação hipotética, que não conheça nada sobre história da Igreja ou teologia, sem saber como se chegou à definição formal da doutrina da Trindade, começasse a ler uma Bíblia, a doutrina ariana parecia tão plausível para ele como também pareceria a doutrina da Trindade. Isso porque esta doutrina não é imediatamente acessível à razão humana. É uma revelação e um mistério que precisa ser aceito pelos olhos da fé (sem reduzir suas provas Bíblicas).
Eu conheço casos semelhantes devido a minha experiência em diálogos com Testemunhas de Jeová. Eles lêem a Bíblia de maneira liberal e racionalista, chegando a conclusões tais como "três não pode ser igual a um" (que é matematicamente verdadeiro, mas não em relação aos mistérios de Deus).
Um outro exemplo vem da minha vida pessoal. Fui criado como protestante metodista, e os metodistas são trinitarianos, mas eu não conhecia nada de teologia. Era tão ignorante nesse assunto que ao assistir a um filme sobre a vida de Jesus, aos 17 anos, com meu irmão mais velho, fiquei chocado quando ele disse que Jesus era Deus. Eu respondi "não, ele é o filho de Deus". Então meu irmão me ensinou um pouco do básico da cristologia cristã.
Em outras palavras, se alguém conhece muito pouco de teologia, ele pode facilmente abrir sua Bíblia, ler que Jesus é o filho de Deus, ou "meu Pai é maior que eu", e muitas outras passagens semelhantes, concluir que Jesus é menor que Deus. Arianismo. Ou como os TJs fazem, ao ler Ap 3,14 ("Eis o que diz o Amém...o Princípio da criação de Deus") e concluir que Jesus fora criado. Estes são exemplos de como nascem as heresias ao longo dos tempos.
Com relação aos Padres, tudo o que é preciso para demonstrar que eles não ensinavam a Sola Scriptura é verificar se as afirmações abaixo se aplicam a um Padre em particular.
1. A Bíblia possui autoridade
2. A Tradição Apostólica possui autoridade
3. A Igreja possui autoridade
Aceitando estes três itens, é impossível que alguém também aceite a Sola Scriptura, porque nesta doutrina, a Bíblia (e a consciência individual) possui a autoridade sobre a Tradição e a Igreja (Lutero, em Worms, foi o defensor deste mesmo princípio), com a garantia de que a Bíblia é sempre - supostamente - "clara" em seus ensinamentos.
Os protestantes, claro, não aceitam os itens 2 e 3, simplesmente. Os Padres afirmam que compõem um tripé, atuando juntas, não contradizendo uma à outra, porque Deus não permitiria tal confusão. É aqui que entra a fé.
A Igreja Católica afirma a suficiência material das Escrituras (assim como os Padres). Porém rejeita a sua suficiência formal, que na realidade é o núcleo do dogma protestante Sola Scriptura.
A autoridade da Igreja é uma necessidade prática, dada a tendência do homem de subverter a Tradição Apostólica como está nas Escrituras, seja ela clara ou não. O fato é que quando uma controvérsia aparece, uma autoridade fora da Bíblia deve encerrar todas as dúvidas e confirmar a ortodoxia. Isto não quer dizer que a Bíblia, apropriadamente entendida, não seja suficiente para refutar erros. Ela apenas não éformalmente suficiente por si só.
Já escrevi livros e vários artigos onde cito extensivamente a Bíblia. Isto não significa que não respeito a autoridade da Igreja ou que eu seja um defensor da Sola Scriptura. Santo Atanásio escreveu extensos argumentos bíblicos. Ótimo, com isso, estudando a Bíblia, fazendo exegese, discutindo suas páginas, pregando, etc., etc., são atos maravilhosos e bons (e os católicos concordam plenamente), mas nenhum destes gestos nos reduz a uma necessidade lógica de adotar a Sola Scriptura como princípio formal.
Em relação à Igreja pré-augustiniana, há recentemente uma tendência convergente entre os estudiosos da Bíblia de que a Escritura e a Tradição na Igreja Primitiva não eram excludentes: kerygma, Escritura e Tradição coincidiam perfeitamente.
A tradição não deve ser entendida como uma adição ao kerygma, mas como a sua pregação de forma viva: em outras palavras, tudo que é encontrado na Sagrada Escritura está presente na Tradição.
Ela está presente no corpo visível de Cristo, inspirado e vivificado pela obra do Espírito Santo...A Escritura e a Tradição derivam de uma única fonte: a Palavra de Deus. Somente na Igreja este kerygma pode ser transmitido sem falhas...
Claramente há um anacronismo em supor que as discussões dos séculos 2 e 3 derivam das controvérsias do século 16 em relação à Escritura e Tradição, pois 'na Igreja ante-nicena não havia a noção de Sola Scriptura, como também não havia a Sola Traditio.'[1]
A Tradição apostólica era pública...tão palpável que mesmo se os apóstolos não estivessem com a Escritura em mãos para demonstrar uma norma de suas doutrinas, a igreja ainda assim seguiriam 'a estrutura da tradição que eles traziam a quem confiaram as igrejas'[2]. Isto foi, de fato, o que a igreja fez nos territórios bárbaros onde o material escrito não era disponível aos ouvintes, conservando o conteúdo da fé transmitida pelos apóstolos e sumarizada no credo...
O termo "regra de fé" ou "regra de verdade"...parece algumas vezes ter pertencido à Tradição, outras à Escritura, outras à mensagem do Evangelho...
Na Reforma...os advogados da autoridade final das Escrituras ignoraram a função da Tradição em conservar o que se conhecia como correta exegese das Escrituras contras as alternativas heréticas.